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segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Sobre a difícil arte de escutar...

ESCUTATÓRIA

Rubem Alves

Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. 
Todo mundo quer aprender a falar, ninguém quer aprender a ouvir. 
Pensei em oferecer um curso de escutatória, mas acho que ninguém vai se matricular. 

Escutar é complicado e sutil. 
Diz Alberto Caeiro que "não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma". 

Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia. 

Parafraseio o Alberto Caeiro: 
"Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito; é preciso também que haja silêncio dentro da alma". 

Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. 

Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...

Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos estimulado pela revolução de 64. 
Contou-me de sua experiência com os índios: reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. 
(Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, [...]. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as idéias estranhas.). 

Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. 

Falar logo em seguida seria um grande desrespeito, pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que ele julgava essenciais. 
São-me estranhos. É preciso tempo para entender o que o outro falou. 

Se eu falar logo a seguir, são duas as possibilidades. 
Primeira: "Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava, eu pensava nas coisas que iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado". 

Segunda: "Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou". 

Em ambos os casos, estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. 

O longo silêncio quer dizer: "Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou". E assim vai a reunião.

Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. 
E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. 

Eu comecei a ouvir. 

Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. 

A música acontece no silêncio. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar. 

Para mim, Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. 

Comunhão é

 quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto.


* Esse texto faz parte do livro de crônicas:

Rubem Alves. O amor que acende a lua.